Estrangeiro, o Infamiliar

Estrangeiro, O Infamiliar

“A barreira da linguagem.” Ouço isso frequentemente de imigrante. Também percebo essa questão em atendimentos a pessoas em sua terra natal relatando diálogos com outros que falam o mesmo idioma. Nem sempre ocorre em conflitos, embora seja mais evidente nesses casos. Às vezes, essa barreira surge em uma simples conversa. Aliás, talvez sejamos fundamentados nessa barreira: muitas vezes, ela se manifesta na fala de alguém sobre seus desejos. O significante difere do significado: digo uma coisa, intelectualizando e explicando, mas a combinação de imagens acústicas e afetos envolvidos, que formam a impressão psíquica, é outra.

“Eu não quis dizer isso”.

“Não entendi o que quis dizer”

“Mal entendido”

Se não compreendemos a nós mesmos, se muitas vezes não conectamos o significado ao significante dentro de nós, se, ao conversarmos, temos a impressão de que falamos sobre a mesma coisa, mas os significantes são diferentes, gerando conflitos… imagine pessoas que falam línguas maternas distintas.

O que diz a psicanálise?

A psicanálise tem uma relação íntima com a linguagem: inclui atos falhos, chistes e sonhos. Indo além, Lacan se apoiou na linguística para fundamentar sua teoria. Diferentemente de Saussure, Lacan apontou o significante como o elemento mais importante na linguagem. Para ele, o significante é a imagem acústica, onde os afetos, por assim dizer, se ligam. É com o significante que o inconsciente lida.

Existe um texto de Freud que é o meu favorito: Das Unheimliche. Nele, Freud dedica várias páginas a transcrever traduções dessa palavra, buscando esmiuçá-la e dissecá-la. Após esse artigo, Unheimliche deixou de ser uma mera palavra para se tornar algo intraduzível, com um sentido e um significante constrangedoramente desconfortáveis.

Aqui, destaco as palavras utilizadas em nossa língua, na tentativa de aproximar o que se quer dizer com Unheimliche: o Estranho, o Inquietante, o Infamiliar.

A sensação que temos ao dizer que o rosto de alguém é familiar, quando o que queremos dizer é que aquela pessoa é e não é estranha. Uma sensação inquietante. Algo que está nos confins da sua memória, mas que, ao se deparar, é estranho. Sensação essa percebida constantemente nos sonhos. Algo que era confortável, familiar, e se tornou desconfortável, estranho, inquietante, infamiliar.

Certa vez, fiz uma curadoria de relato de imigrante para uma revista e percebi o quanto temos uma sabedoria inconsciente que nos é comum. Em um dos relatos, uma criança dizia à imigrante que brasileiros lhe causavam medo. A imigrante protagonista discorria sobre o imaginário, um conceito também presente na psicanálise. Em todos os relatos, o Estranho estava lá. Um estranho em outro lugar. Unheimliche de si mesmo. Como se tornar-se estrangeiro (que tem como sinônimos “estranho”, “exótico”, “alheio”) trouxesse, junto com a falta de pertencimento, familiaridade e referências, essa estranheza de si mesmo. Como uma ficção de si.

Freud explica…

Freud conta que, certa vez, caminhava a esmo por ruas que não conhecia em uma cidade italiana. Depois de vagar sem direção, percebeu que havia retornado à mesma rua por onde havia passado há pouco. E depois, novamente. A sensação de desamparo e infamiliaridade.

Estar em um cômodo escuro, ver um rosto que não deveria estar ali e, de repente, se dar conta de que é um espelho. Unheimliche.

Gilson Iannini escreveu, no prefácio da edição que já citei, o seguinte: “o infamiliar mostra não apenas que o muro entre as línguas é intransponível, mas também que a passagem entre uma língua e outra exige um certo ‘forçamento’. E que esse forçamento fecunda e forma as linhas de chegada, graças à evidência da insuficiência denunciada pela língua de partida”.

Isso se aplica tanto à intradução, como ele mesmo chamou, quanto à infamiliaridade que o inconsciente traz, bem como à experiência de um imigrante. Ao nos depararmos com um desejo antes desconhecido na clínica, no processo analítico, temos essa mesma sensação de choque, susto e estranheza.

Afinal, somos todos errantes, nômades de nossos desejos.


Se esse texto trouxe novos insights ou despertou questões que você gostaria de explorar mais a fundo, uma conversa em um ambiente terapêutico pode ser o próximo passo. Sinta-se à vontade para agendar uma consulta e começar esse processo.


Atenção:
Este conteúdo não oferece suporte ou atendimento imediato a pessoas em crise suicida.
Em caso de crise ligue para o CVV – 188
Em caso de emergência, procure o hospital mais próximo.
Havendo risco de morte, ligue imediatamente para o SAMU (192) ou Corpo de Bombeiro (193).

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